domingo, 10 de janeiro de 2010

Duas

Lorena era loira, com a pele branca angelical de quem tem o dom da beleza. Olhos penetrantes, azuis como o céu de Brigadeiro. Alma inocente, ingênua como uma criança que diz que a tia está gorda.
Catarina sempre foi morena, mas tinha a recente vontade de ter o cabelo roxo. Tinha dores de mundo e revoltas de alma. Possuía fases que ninguém decifrava, como quem muda a cor do quarto de rosa para preto.
Tinham o mesmo endereço, mas não o mesmo lar. Encontraram-se no acaso diário da vida, enquanto ainda eram ambas ingênuas, mas certamente crianças.
Conservavam a frequência de presença e cultivavam a convivência. Era como se destinos distintos formassem um só.
Eram duas meras crianças, daquelas que aproveitam o tempo para explorar. Exploravam juntas os botões do elevador e o terraço proibido.
Cada uma tinha quatro avós e quatro avôs. Até o dia em que esse número diminuiu.
Catarina esteve com ela quando o seu pranto condisse à perda. E de alguma forma, em sua vez, Lorena esteve também.
Se alguém procurasse por Catarina, deveria antes, encontrar Lorena. Eram sempre duas.
Hoje já não têm o mesmo endereço e nem o mesmo lar. Há contrastes, mas mantém-se o brilho.
Por conflitos de vida, criaram mundos diferentes, mas unem-se na lembrança e brigam pelas bonecas mais bonitas.
Recordam-se da infância puramente apreciada, na qual assunto era o almoço de cada dia.
Continuam sendo a presença desejada do dia de aniversário e o convite extra do baile de formatura.
Tiveram em comum a infância. E assim garantiram o resto da vida.

Ainda quando querem brincam de boneca.

Domínio

E de repente, me perdi na busca de perspectiva.
Encontrei desejo, desejei encontro.
Pensei em querer e quis não pensar.
Imaginei motivos, desesperei-me.
Mas continuava inegável o quanto me sentia estranhamente atraída por ele.
Incrível é sentir falta do que não se vê.

Roubava-me o sono, tirava-me o fôlego. Assim, com a facilidade de quem estala os dedos.
Bastou-me uma palavra sua para ter todas as minhas.
Como se não fosse o bastante, era motivo das minhas frequentes fugas escritas.
Ocupava meus dias, fazendo-me esperar por um sinal de presença.
Um mero encontro apenas, distante. Como quem cumprimenta a prima de terceiro grau.
Talvez não me conheça, mas certamente me conquista.
E assim passo minhas noites, a imaginar.

"Qual o som da sua voz? Será que coleciona borboletas?"

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Indiferença

-Sentiu isso?
-Hm? Perguntou Fábio, enquanto tinha mais atenção à fria tela do computador do que à própria esposa.

-Este cheiro... Cheiro de Natal.
Manoela se encontrava junto à janela, apreciando o céu noturno, temendo ser tola por notar tantos detalhes.
-Ah Manoela, não diga asneiras. Não, não senti cheiro algum.
Ela desfez o meio sorriso que tinha na face e o brilho que habitava-lhe os olhos sumiu subitamente. Fechou a janela e foi à cozinha descongelar a carne do dia seguinte.
-Peixe ou frango, Fábio?
Era a única coisa que ele comia após se tornar "vegetariano", além da típica salada de cada dia.
-Não virei almoçar amanhã, comerei qualquer coisa na rua.
-Demorará a chegar? Estava pensando em dar uma volta no calçadão e admirar a decoração deste ano.
-Seria ótimo, querida, mas terá de ficar para o fim de semana. Você sabe que estou cheio de trabalho e que tenho prazos a cumprir.
-Sim, Fábio. Verei se mamãe me acompanha.

Ele então fechou o notebook, deu-lhe um beijo na testa e foi ao quarto se trocar e dormir.
Enquanto isso, Manoela tirava a mesa, lavava os pratos e pegava os sapatos que Fábio diariamente deixava na sala, local em que permanecia horas após chegar e em que muitas vezes, jantava na companhia de seus dígitos.
Ela então abriu o armário da pia e tirou de lá uma garrafa de whisky. Tomou duas doses enquanto uma lágrima descia de seus olhos.

Secou a lágrima, lavou o copo e foi deitar.

Superficial

Em datas comemorativas, é belo se observar.
Tem aquele que vai à sogra, aquele que vai ao túmulo, aquele que vai ao bar.
Um vai sem vontade, outro se contenta em ficar.
Embora todos, de alguma forma, apenas finjam estar.

Todos unidos à mesa, menos aquele que vai trabalhar.
Enquanto ao lado de um copo, alguém está à procura de um par.
Duas num chat eterno procuram o que comentar.
E do outro lado da tela, alguém está a chorar.
Alguém se encontra em um ônibus, indo de volta ao lar.
Logo ao lado, outro alguém não tem para onde voltar.
Uma bebe vinho ao lado de seu marido, a roncar.
Outra se joga de um prédio, para não ter mais de respirar.
Tem aquele que passa o tempo com linhas tortas a traçar.
E aquela que esquenta a comida, para ela mesma jantar.
Uns saem em família e vão ao cinema gastar.
Outros escolhem o dia, e vão a entidades doar.

Em datas comemorativas, é triste se observar.
Todos unidos à mesa, menos aquele que se foi, sem avisar.
Tem aquela que sai por aí, a passear.
E aquela que escreve sobre comemorar.