quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Renúncia

"O Felipe deixou de trabalhar", ela me disse.
"Com tantas pessoas dispostas a conseguir um emprego, ele simplesmente desistiu. De um emprego bom, que garantia diversos recursos. Tinha convênio, vale transporte, cesta básica. Nunca vi alguém preguiçoso como Felipe, não sei de quem ele herdou tamanha preguiça, com certeza de mim é que não foi. Acordou e simplesmente pediu as contas. "Não quero mais, meu amigo me arranjará outro emprego ano que vem", ele dizia com a maior naturalidade do mundo. Nunca peguei um centavo de seu ordenado, nem para pagar suas próprias contas, mas o fruto do meu décimo terceiro nem cheguei a ver.
O tanto que já chorei esta manhã é indizível. Não sei mais o que faço.
Se um dia Renato quiser mudar-se daqui, creio que deixarei Felipe. Ao menos assim ele aprende a se virar. Claro que ele não vai se esforçar comigo aqui, pagando suas contas e passando-lhe a mão na cabeça.
Ele não faz nada além de maltratar-me. Fuma como uma chaminé e dorme o dia inteiro.
Chega tarde, quase cedo, e é motivo frequente das minhas lágrimas."

Eu ouvia minha tão querida tia a lamentar-se, sem saber o que dizer. Concordava com a cabeça e com a cara mais sem graça que alguém já teve em uma situação assim.
Procurava consolá-la, mas que tolice. Não encontrava uma palavra capaz de fazê-lo.
Via seus olhos inchados, chorosos. Sua expressão demonstrava demasiado cansaço.
Tudo o que eu mais queria era tirar-lhe a dor.
Não era a primeira vez que isso acontecia.
Uma alma de boa fé, que reza frequentemente pelo bom comportamento de seu filho, assim como pelo bem de todos ao seu redor.
Às vezes, procurava sem sucesso, algum motivo pelo que ela estava passando.
Sempre mimou-o por ser órfão de pai, talvez esta fosse a razão.
Não podia culpá-la, creio que faria o mesmo.

Chegamos em sua casa, despedi-me e ajudei-a com as compras.
Um grande sentimento de compaixão instantaneamente inundou-me.
E então, fui para casa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Sãos e sóbrios

Éramos muitos. Éramos sempre.
Nos encontros e desencontros, nada parecia importar.
Uníamo-nos no intuito de apenas trocar idéias e idealizar o amanhã.
Amávamos a cumplicidade, e união igual jamais foi vista.
Na mesa de um bar, em uma praça qualquer, em um carro sem rumo, em qualquer lugar.
O que importava era importar-se uns com os outros.
Conosco, uma garrafa de coca-cola, um saco de amendoins.
Uma conversa em prosa e prazo desconhecido.
Presenças frequentes, seja em carne ou em palavra. O presente era a dádiva. O valor era estar.
Na chuva, no sol. A chave era selar um contrato imaginário com laços de afeto invisíveis.
E hoje, o que fica na fotografia, nada mais é que lembrança.
Hoje, o amanhã é lembrança de ontem.
Lembrança de momentos insanos, memoráveis. Sóbrios.

Saudade dos tempos que se foram, vontade dos dias que viriam.
O tempo ganho perdeu-se em seu decorrer.

Conosco, uma garrafa de cerveja e uma dose de nostalgia.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Não maltrate o meu amigo

Seja com uma palavra amiga, atenção cedida ou compreensão inusitada, Fátima sempre esteve lá. A princípio, notei-a com receio. Afinal, o que não é íntimo certamente intimida. Perguntei o seu nome e assim, dei início. Dei início a algo que hoje não tem fim.
Fátima sempre pareceu-me mais que os outros, fato que de alguma forma costumava me incomodar. Porém, somente até o dia em que notei que, de fato, ela era. Era e sempre foi.
Indescritivelmente, creio que nos ligamos de tal maneira, tão distinta, que hoje somos quase que um só. Um só elo, comum entre dois corpos. Ela, forte, sincera, secamente encantadora. Eu, fresca, fraca e inutilmente alegre.
Diferente do que há, a diferença é o que nos torna iguais.
O que faz meus dias é ver a menina de óculos vermelhos, que nada faz além de sê-la. Aquela que possui a voz que soa aos meus ouvidos como uma sinfonia.
"Aprendi uma música nova", ela me diz com frequência. O fato é que Fátima, sem saber, rói as cordas do meu violão. E assim como as músicas que ela aprende, todas as outras, de alguma forma, me recordam-na.
O que tira meu sono à noite é a possibilidade de um dia perdê-la. De perder o suspiro que hoje me mantém. De perder o sorriso que hoje me contém. Para ela, o restante. Por ela, a renúncia.
Fátima sempre esteve lá. No decorrer do tempo, na origem da distância, na mutável convivência. Nos olhos chorosos, nos telefonemas, nos deslizes rotineiros. Seja com um abraço acolhedor, um lugar só nosso, uma viagem , uma música, um mergulho sem biquíni ou até mesmo com um achocolatado. Fátima sempre esteve lá.
Fátima sempre foi Fátima.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Estado terminal

Esperam impacientes e certamente cansadas, enfileiradas e indiferentes.
Murmúrios fazem a trilha e a tralha inconvém.
Não se tocam, não se falam. Esperam.
A diversidade surpreende e a correria ocupa.
Horários estipulados e vários rostos ao acaso.
Chega então, a tão esperada minhoca de metal.
A insensibilidade prevalece e a procura por espaço inicia.
O toque é inevitável e a estranheza é falta de opção.
É fria a situação e quente o calor corporal.
Ouve-se a conversa alheia e conversa-se assuntos casuais.
O falado é banal e o papo é clichê.
"Faz frio hoje, parece que vai chover."
O balanço nina, o clima está no ponto e o ponto ainda está longe.
Repouso os olhos por um instante e no outro, a inércia me desperta. Ao menos ainda a tempo. O ponto é o próximo.
Na ponta dos pés, num segundo, solicito a minha parada.
Pronto. Estou no ponto.
Termina assim mais um dia.
Descrevo assim a rotina.

Retrato pra Iaiá

E ela enfim, retornava de onde certamente não se volta.
Acordou após um sono profundo, diário, eterno e então, voltou a de fato, viver.
Vivia aos poucos, até onde era capaz de aguentar. Vivia.
Voltou a respirar, aspirar e se inspirar. Voltou a crer, querer e se ver. Viu alguém que não valia a visão e valeu para visar a um pouco mais.
Avistou alguém que comia copos e não bebia leite.
Nadou para sair do naufrágio e para, enfim, voltar a navegar. Acendeu a luz e não aprovou o que habitava o escuro. Nem no claro era mais clara.
Arrumou a cama para esperar alguém que não queria esperar e no não anseio, ansiava, não ao começo, nem ao meio. Em meio ao seu sono, cansava-se de fugir.
Uma melodia apenas, para entrar num melodrama e um drama para melar a vida de quem ela diz amar.
Procurava cura e encontrava crua a verdade da cruel solução. Solucionava entre soluços, o mistério de seu sorriso extinto, enquanto uma solução aquosa caía de seus olhos e marejava sua folha de papel.
Sentia falta, de fato, de quem fazia caricaturas e desenhava retratos. De quem preenchia folhas e dias com suas palavras e fazia sua presença preencher.
Tinha saudade da pessoa que via a magia onde não havia nada de mágico e que para tal, mágico era o teatro que ouvia em silêncio.
Tinha falta então, de quem sonhava.
Sonhava então, em voltar a ser.